Vinte e um de setembro é o Dia Mundial da Doença de Alzheimer (DA) especialmente reservado para que em todos os países existam divulgações e discussões sobre esta doença tão comum e importante. DA é a causa mais frequente de demência, também denominada transtorno neurocognitivo maior, condição em que há declínio das faculdades mentais, principalmente da memória, linguagem, capacidade de planejamento e do comportamento que interfere e impede a vida independente.
Como médicos e pesquisadores especializados nesta doença somos sempre questionados sobre dois pontos: 1) o que fez com que esta doença se tornasse tão comum atualmente? 2) já existe tratamento e como avançam as pesquisas?
Para responder a primeira questão temos que saber que demência sempre foi frequente em indivíduos idosos, mas no passado a maioria da população não atingia idades avançadas o que tornava as demências relativamente raras. Além disso, outras designações como arteriosclerose ou demência senil eram utilizadas para casos que hoje seriam diagnosticados como DA.
Quanto ao tratamento, ainda não temos medicamentos que curem ou mesmo impeçam a progressão da DA. Existem remédios com efeito sintomático que podem melhorar um pouco as condições do doente. Mas há muito estudos em andamento. A DA faz parte de um grupo de doenças denominadas neurodegenerativas, que incluem a doença de Parkinson e outras menos conhecidas como a demência frontotemporal e a doença de Lewy, além de diversas outras mais raras. A principal hipótese para explicar a origem das doenças neurodegenerativas é a de que proteínas normais do nosso organismo passem a ser mal processadas e depositem-se em regiões específicas do sistema nervoso central, causando alterações neuropatológicas que se manifestam com sintomas como declínio da memória na DA ou lentidão dos movimentos e tremores na doença de Parkinson, por exemplo. Sabe-se atualmente que estas proteínas mal processadas começam a se depositar no tecido cerebral décadas antes que a doença se manifeste clinicamente, o que abre uma janela para diagnóstico e tratamento muito precoces. Mas esta é ainda uma estratégia somente para a pesquisa porque de nada serviria ter o diagnóstico de que o processo da DA se instalou se não houver tratamento disponível e a doença somente poderá vir a manifestar-se décadas mais tarde. Se este conhecimento cria dilemas éticos na vida real, é essencial para a pesquisa porque tem grande chance de permitir a descoberta de tratamentos eficientes que impeçam a progressão da doença e mesmo a cura. Em Medicina, como nos ensinam as experiências nas epidemias de doenças infecciosas e nas descobertas de tratamento de tipos de câncer, por exemplo, diagnóstico e tratamento precoces são essenciais.
Estas são questões realmente importantes, mas há duas ainda mais urgentes: o que estamos fazendo agora para nos protegermos como pessoas individuais e como país desta doença ameaçadora?
Do ponto de vista individual é possível reduzir o risco de demência no envelhecimento. Sabe-se que controle adequado da pressão arterial, dos níveis de glicose e colesterol no sangue, principalmente, durante a idade adulta e madura reduz consideravelmente o risco de demência. Além disso, atividade física constante, baixa quantidade de gordura abdominal, cessação do tabagismo e dieta adequada também têm este efeito. É fácil perceber que são as mesmas recomendações para reduzir os riscos de infarto do miocárdio. Embora estas medidas possam ter efeito sobre a ocorrência de DA é ainda mais provável que diminuam a ocorrência de pequenas lesões vasculares no cérebro que são relativamente comuns no envelhecimento e que, somadas às alterações cerebrais causadas pela DA, ampliam muito a chance do aparecimento da demência. Além destas medidas, atividade intelectual ou treino cognitivo (quando indicado) e manter-se ativo socialmente também reduzem o risco de demência. Todas estas medidas e condutas devem ser tomadas ao longo da vida, mas estudos recentes demonstram que mesmo quando iniciadas mais tardiamente, depois dos 60 ou mesmo depois dos 70 anos, ainda têm efeito protetor.
E o que podemos e devemos fazer como país?
Como explicado no início, DA é a principal causa de demência, sendo responsável por cerca de 70% dos casos. Em estudos realizados em todo o mundo, a frequência de demência dobra a cada 5 anos a partir da idade de 65 anos. Em estudo que realizamos na cidade de Catanduva com apoio da FAPESP, observamos que a frequência era de 1,6% em indivíduos com idade de 65 a 69 anos, subia para 3,2% para 70 a 74 anos, 7,9% dos 75 a 79 anos e atingia 38,9% nos indivíduos com 85 anos ou mais. Como a expectativa média de vida dos brasileiros, segundo o IBGE, aumentou mais de 30 anos de 1940 a 2016 quando atingiu 76 anos, a DA está se tornando cada vez mais frequente.
A população brasileira com idade de 65 anos ou mais era de 21 872 milhões de pessoas em 2018 e tem crescido muito mais que a população com idade até 13 anos, ainda segundo o IBGE. Considerando que a frequência de demência em indivíduos com mais de 65 anos na América Latina é de cerca de 10%, existiriam no Brasil mais de 2 milhões de pessoas com demência.O país precisa preparar-se para o crescimento enorme do número de indivíduos com demência à medida que a expectativa de vida aumenta. E o que é possível fazer agora?
Há um conjunto de medidas que precisam ser tomadas pela sociedade e principalmente pelos responsáveis por políticas públicas. Aqueles conhecimentos a que nos referimos acima para a prevenção individual precisam ser intensamente divulgados a toda a população assim como as medidas de controle de fatores de risco devem ser cada vez mais disponíveis a todos. Se grande parte da população for informada e as medidas forem tomadas, o número de casos de demência no Brasil não aumentará tanto como irá acontecer se continuarmos sem os cuidados necessários.
Os principais fatores de risco foram mencionados acima, mas faltou um deles, talvez o mais importante: a educação. Diversos estudos têm demonstrado que a educação mensurada pelos anos de escolaridade é um fator importantíssimo para reduzir o risco de demência. No estudo supracitado que realizamos em Catanduva, demência foi constatada em 12,2% dos analfabetos e foi se reduzindo à medida que a escolaridade aumentava atingindo 3,5% dos que tinham 8 anos ou mais de escolaridade. Logo, a prevenção de demência precisa começar na infância e como se pode verificar pelas taxas acima, a redução de frequência com a educação da população pode ser muito significativa.
Há muitas outras medidas que precisam ser tomadas e gostaríamos de apresentar um problema que às vezes escapa a quem não convive com estas doenças. Quando um idoso é acometido pela DA e torna-se dependente, alguém precisa cuidar dele, por vezes durante todo o dia. Mais frequentemente em nossa sociedade este papel é da mulher, a esposa ou a filha, que tem que abandonar seu trabalho para a dura tarefa de cuidar de seu familiar. Nas famílias mais pobres de nossa sociedade, não é incomum que a mulher com filhos pequenos seja a principal ou única provedora do lar, e então tenha que abandonar seu trabalho para prestar assistência ao indivíduo afetado, pois não há instituições públicas onde ele possa ser cuidado durante o dia enquanto a mulher trabalha. Famílias de maior poder aquisitivo podem contratar cuidador profissional, mas isto é impossível para famílias menos favorecidas. Este é um problema grave que precisa de soluções urgentes. Enquanto isso não ocorre, ações positivas precisam ocorrer na comunidade, seja em hospitais, escolas, igrejas em busca de maior conhecimento e discussão.
Muitas outras medidas são necessárias, destacando-se a necessidade de diminuir o estigma, a sensação equivocada de vergonha que as pessoas têm de que seu familiar ou amigo seja afetado pela DA.
Para que todas estas medidas sejam implementadas é necessário que o Brasil tenha um Plano Nacional de Demência, assim como muitos países desenvolvidos e mesmo países menos desenvolvidos como Costa Rica, Cuba, México e Chile já têm.
Associações de pacientes e familiares como a Federação Brasileira de Associações de Alzheimer (FEBRAZ) que é ligada à Alzheimer Disease International, associações internacionais como o projeto STRiDE (Strengthening Responses to Dementia in Developing Countries), do qual participam o Brasil e seis outros países: Índia, Indonésia, Jamaica, Quênia, México e África do Sul, e as comunidades médicas e científicas brasileiras estão lutando para que a classe política associe-se nesta tarefa absolutamente inadiável de criar o Plano Nacional de Demência em nosso país.
Artigo escrito pelo Prof. Ricardo Nitrini, Titular de Neurologia na FMUSP e Profa. Sonia Maria Dozzi Brucki, Livre-Docente de Neurologia na FMUSP