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Galeria de Homenageados do IMT

Waltraut Helene Lay (1933-2024). Identificação de receptores para complemento em macrófago1, de receptores de IgG via FC em macrófagos2 e um sobre adesão de eritrócitos de carneiro sobre uma subpopulação de linfócitos3, primeira identificação dos linfócitos T.


Para os cientistas de meados do século XX, novas conclusões corretas decorrentes dos avanços eram naturais e a ciência era de domínio público. Vendo a produção de Fermi, fico perplexo por ele ter produzido tanto e continuamente até a sua morte precoce com 57 anos, mas hoje isso não seria possível. Ao longo do tempo, perdemos a visão do início da imunologia e agora apenas olhamos para as múltiplas famílias de linfócitos identificadas por anticorpos monoclonais como um fato corriqueiro. 

Então, criticamos Jerne e sua rede idiotípica baseada em princípios simples porque temos pouca comprovação dela. Se em 1970, dois cientistas descrevessem o primeiro método que pudesse classificar os tipos de linfócitos do sangue, isso seria muito importante e talvez devesse representar um prêmio Nobel, mas hoje foi diluído com o tempo e os avanços apoiados em seu método. A memória científica não é perfeita e o tempo exerce seu efeito desvanecedor. Recentemente, Waltraut Helene Lay nos deixou. A velha aposentada, surda, baiana e de nome alemão nos deixou sem o seu olhar intrigante, sua alegria e vitalidade e sua vontade férrea. Os que a conheciam toleravam sua rudeza e sua atuação discreta, sem perceber que a médica da FMUSP, formada apesar da deficiência auditiva, tinha feito sua opção por ser cientista para não prejudicar seus eventuais pacientes. 

A aposentadoria precoce ajudou ainda mais no esquecimento. Aposentada desde 1992, poucos colegas vivos conviveram com ela. Eu convivi alguns anos com ela e mantinha um contato respeitoso, para vigiar uma velhice coerente com a dignidade de um colega médico, ex-aluno e professor da FMUSP. Ela assim concluiu dignamente sua jornada neste mundo, ao som de Fita Amarela de Noel Rosa, sua escolha brasileira para o funeral. Ela tinha sido colega docente da FMUSP contratada em ~1960 para o departamento de Microbiologia e Imunologia. Fez seu doutorado em Imunologia e foi fazer pós-doc em 1966 na Universidade de Nova York junto ao Paul Miescher e subsequentemente sob orientação do Victor Nussensweig, que ainda está vivo e também é médico, doutor e professor pela FMUSP. Ela produziu algumas das mais importantes publicações em imunologia da época: como a identificação de receptores para complemento em macrófago1; de receptores de IgG via FC em macrófagos2 e um sobre adesão de eritrócitos de carneiro sobre uma subpopulação de linfócitos3, primeira identificação dos linfócitos T. 

Todos estes trabalhos tiveram mais de 500 citações entre 1971 e 1985 e se tornaram uma unanimidade internacional pela revista Current Contents precursora do atual sistema Clarivate, resultando em pelo menos dois Citation Classics. Todos foram feitos por poucos pesquisadores brasileiros, na realidade Waltraut, Bianco e Victor, e publicados em revistas de alto renome e impacto. Todos eram formados no Brasil, interessavam a universidades americanas, e apenas Waltraut voltou para o Brasil para encontrar seu departamento da FMUSP em transferência para o recém-criado ICB na USP. Ela optou para permanecer na FMUSP no Departamento de Medicina Preventiva e no IMTSP, abandonando o futuro Departamento de Imunologia do ICB. Conseguiu financiamento da Fundação Banco do Brasil para a construção do segundo andar do prédio original do IMTSP, que praticamente ampliou em 40% a áreas de laboratórios da instituição em 1980. 

Continuou sua atividade cientifica com orientação de doutores pela pós-graduação da Imunologia da USP principalmente em grupos sanguíneos e em subclasses de imunoglobulinas, mas a surdez piorava e a dificuldade de comunicação começou a prejudicar sua atuação cientifica, entrando em um processo de aposentadoria precoce alcançada em 1992. A partir de então, dedicou-se a atividades de gastronomia e fotografia, espalhando muitas fotos maravilhosas pelo Laboratório de Protozoologia e experimentando um novo tipo de ciência culinária, nem sempre com o sucesso necessário, mas com algum reconhecimento pela Revista Cláudia e pela Nestlé. 

Como diria São Paulo, o fundador da igreja católica e nosso patrono, Waltraut lutou o bom combate e construiu uma base para a imunologia que temos hoje, identificando os primeiros marcadores de subpopulações de linfócitos e de vários receptores de macrófagos que hoje usamos rotineiramente em nossas explicações imunológicas como se fossem naturalmente descritos por Deus e não fossem definitivamente descobertos e mostrados por cientistas interessados. Não lembraremos dela porque não convivemos com ela, mas o exemplo é dignificante. Com a adversidade da restrição pela surdez, Waltraut não desistiu da Medicina e provavelmente cooperou mais por se dedicar a uma inteligente e produtiva atividade cientifica.  

Texto: Prof. Dr. Heitor Franco de Andrade Júnior.

Saudemos seu exemplo. Bibliografia 

1- Receptors for complement of leukocytes. Lay WH, Nussenzweig V. J Exp Med. 1968 Nov 1;128(5):991-1009. doi: 10.1084/jem.128.5.991.PMID: 4176227. 

2- Ca++-dependent binding of antigen-19 S antibody complexes to macrophages. Lay WH, Nussenzweig V. J Immunol. 1969 May;102(5):1172-8. 

3- Binding of sheep red blood cells to a large population of human lymphocytes. Lay WH, Mendes NF, Bianco C, Nussenzweig V. Nature. 1971 Apr 23;230(5295):531-2. 

4- https://garfield.library.upenn.edu/classics1984/A1984TL42000002.pdf



Profa. Waltraut Helene Lay

Eufrosina Setsu Umezawa (1948-2023) e a sorologia da Doença de Chagas ou Tripanossomíase Americana


A Doença de Chagas ou tripanossomíase americana, uma doença humana transmitida por vetores e causada pelo Trypanosoma cruzi, afeta uma grande fração da população sul-americana.
Os esforços para diagnóstico e controle vetorial no século passado foram bem sucedidos na maioria dos países, mas como a doença era crônica sem terapia eficaz, há pacientes mais velhos que sobrevivem até agora, com longa cronicidade para o resto da vida da pessoa infectada, causando graves consequências devido a complicações cardíacas ou intestinais.
Trypanosoma cruzi é um protozoário geralmente intracelular com parasitemia muito baixa, o que dificulta abordagens parasitológicas. Devido à infecção crônica e não esterilizante, o diagnóstico mais seguro é através da detecção de anticorpos específicos. 

Na década de sessenta do século passado, líderes da saúde pública e das universidades brasileiras estavam preocupados com a Doença de Chagas, procurando pessoas infectadas e tratando possíveis arritmias cardíacas. Depois de 1965, no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, Mario E. Camargo e seu grupo aprimoraram essas técnicas para um projeto de pesquisa nacional, criando reagentes estáveis reprodutíveis para testes externos confiáveis realizados de forma padronizada.

Eles realizaram mais de um milhão de testes para determinar a prevalência desta infecção no Brasil (Camargo et al, 1984) e produziram vários milhões de testes para serem usados em outras partes do país. Demonstraram também inúmeros problemas na detecção de anticorpos desta infecção, devido a reações cruzadas ou interferentes e à necessidade de padronização de antígenos. Os testes foram suficientes para rastrear toda a população e levar as pessoas infectadas ao atendimento médico, mas após esta triagem, a infecção deveria ser confirmada por marcadores sorológicos mais específicos, ensaios múltiplos e ensaios de parasitologia demorados e restritos.

A doença de Chagas ou tripanossomíase americana é transmitida pelo sangue armazenado, e é uma das infecções rastreadas nos bancos de sangue e essas interferências levaram a testes falsos positivos e ao descarte de preciosas bolsas de sangue suspeitas . No grupo de Camargo, uma das alunas promissoras era Eufrosina Setsu Umezawa, apelidada de Frô pelos amigos. Ela se especializou no difícil crescimento in vitro de parasitas e no fracionamento de antígenos, excluindo as frações com reação cruzada e promovendo ensaios mais específicos.
Eufrosina Setsu Umezawa (Frô) foi professora do Laboratório de Protozoologia e do Departamento de Medicina Preventiva que montou, liderou e equipou um grupo de pesquisa que promoveu diversos estudos na área de antígenos específicos e técnicas sorológicas no diagnóstico da Doença de Chagas, culminando como a referência nacional e internacional em diagnóstico parasitológico e sorológico da Doença de Chagas na virado do século. Seu grupo encontrou uma fração de antígeno de alto peso molecular produzida por formas circulantes e que apresentava especificidade de anticorpos para o agente. Este antígeno secretado é muito específico e sua produção foi publicada (Umezawa et al, 1996 & 2001), o que permitiu sua utilização em kits produzidos comercialmente (Chagas TESA VIRCLIA®) e utilização em centros especializados como Centers of Disease Control nos EUA. 

Apesar da sua especificidade, os ensaios TESA e TESA blot são ensaios confirmatórios dispendiosos e sem interesse para grandes produtores comerciais de kits de diagnóstico, geralmente não interessados em reagentes de saúde pública. Em uma breve biografia, Frô concluiu a graduação em Farmácia pela Faculdade de Farmácia e Bioquímica da USP em 1975 e ainda durante a graduação, iniciou a experimentação científica no Laboratório de Soroepidemiologia do IMTSP sob a orientação de Sumie Hoshino Shimizu, tornando-se especialista no cultivo in vitro de T.Cruzi com excelentes resultados, com três publicações científicas antes de sua graduação completa. 

O excelente desempenho levou à pós-graduação em Imunologia sob orientação do Prof. Mario E. Camargo, referência mundial em imunofluorescência e sorologia clínica, e foi contratada pela FMUSP em 1979, como professora do Departamento de Medicina Preventiva vinculado ao IMTSP, devido à Pesquisa Nacional de Doença de Chagas, projeto apoiado por G.R.Silva e outras lideranças do departamento. Após o mestrado “Isolamento e Obtenção de Trypanosoma cruzi em culturas celulares” em Imunologia em 1980, buscou aprimorar sua metodologia científica com equipamentos do Laboratório de Protozoologia do IMTSP, sua posterior sede. Buscou colaboração com o grupo liderado pelo Prof. Walter Colli do Instituto de Química da USP, sendo membro fundador da Reunião Anual de Pesquisa Básica em Doença de Chagas, encontro anual marcante na evolução futura da pesquisa em Doença de Chagas. Obteve o doutorado “Antígenos de superfície do Trypanosoma cruzi reconhecidos por soros com atividade lítica obtidos de pacientes chagásicos e animais de experimentação” em 1989, tornando-se professora em período integral.
Ao final do doutorado, já era uma pesquisadora consagrada, com linha de pesquisa definida e reconhecida por fontes de financiamento, tanto nacionais, como FAPESP e CNPq, mas também internacionais, como a Agência Internacional de Energia Nuclear. 

Sua evolução científica foi brilhante, com a formação de novos pesquisadores nacionais (10 mestrados e 5 doutorados) como Tokiko Kyomen Matsumoto, do Instituto Adolfo Lutz, mas uma intensa atividade de formação de pesquisadores de língua espanhola de áreas com alta incidência de Doença de Chagas ou tripanossomíase americana, como Zuleima Caballero do Panamá e Viviana Pinedo do Peru, entre outros. Mesmo após sua aposentadoria voluntária em 2017, permaneceu ativa e publicou até 2021. Sua produção quantitativa é de pelo menos 57 artigos científicos em periódicos indexados e revisados por pares referenciados no sistema PubMed, que é bastante restrito.
Possui pelo menos 1800 citações aos seus artigos e índice h de 23, ou seja, possui 23 artigos científicos com mais de 23 citações. Frô manteve seu grupo ativo e constantemente financiado, tendo dotado o Laboratório de Protozoologia com todas as tecnologias necessárias ao desenvolvimento de seus projetos, além de apoiar indiretamente qualquer pesquisador interessado na tripanossomíase americana que necessitasse de seu conselho ou cooperação, sempre enérgico e prestativo, como quanto a Roxanne Piazza, do Instituto Butantan. Ela armazenou e manteve as linhagens de seus parasitas com excelente viabilidade; com ajuda de Marilda S. Nascimento, e essas amostras armazenadas eram muitas vezes as últimas amostras de cepas originais no país. É extremamente difícil ter um repositório adequado para este parasita instável, facilmente contaminado com outros agentes. Foi uma excelente orientadora científica, confiando na capacidade de cada um e exigindo sempre excelência.

Seus estudos permitiram a construção de testes confiáveis para o diagnóstico da doença de Chagas, e até hoje seu laboratório é centro de referência para esse tipo de exame. Ela também estudou outros cinetoplastídeos de vida livre ou patogênicos e deixou grandes colaboradores ativos na pesquisa como Norival Kesper e Marilda Nascimento, que mantém vivo seu pensamento crítico universitário sobre a pesquisa e o diagnóstico da Doença de Chagas.
Ela também foi uma excelente pintora e artista, como demonstra uma de suas pinturas que embeleza este comentário.

Referências:

Camargo ME, da Silva GR, de Castilho EA, Silveira AC. Serological survey of the prevalence of Chagas' infection in Brazil, 1975/1980. Rev Inst Med Trop Sao Paulo. 1984 Jul-Aug;26(4):192-204. Portuguese. doi: 10.1590/s0036-46651984000400003. PMID: 6441232.

Umezawa ES, Nascimento MS, Kesper N Jr, Coura JR, Borges-Pereira J, Junqueira AC, Camargo ME. Immunoblot assay using excreted-secreted antigens of Trypanosoma cruzi in serodiagnosis of congenital, acute, and chronic Chagas' disease. J Clin Microbiol. 1996 Sep;34(9):2143-7. doi: 10.1128/jcm.34.9.2143-2147.1996. PMID: 8862574; PMCID: PMC229206. Umezawa ES,

 Nascimento MS, Stolf AM. Enzyme-linked immunosorbent assay with Trypanosoma cruzi excreted-secreted antigens (TESA-ELISA) for serodiagnosis of acute and chronic Chagas' disease. Diagnosis Microbiol Infect Dis. 2001 Mar;39(3):169-76. doi: 10.1016/s0732-8893(01)00216-4. PMID: 11337184.

Texto de:

Prof. Dr. Heitor Franco de Andrade Jr e Dr. Norival Kesper Jr.



Quadro pintado por Eufrosina Setsu Umezawa

A ideia desta página é homenagear, postumamente, profissionais de relevância que atuaram para o crescimento da instituição em prol do ensino, pesquisa e extensão. Para indicar um antigo pesquisador, ou profissional de apoio, para a Galeria do Instituto de Medicina Tropical da FMUSP, basta enviar o texto assinado, uma imagem que se relacione com o homenageado e ter esse profissional contribuído ao IMT, com relevância e dedicação, durante o período que atuou na Unidade. 

Desta forma, estaremos mantendo a memória viva daqueles que por aqui passaram e deixaram seu esforço e conhecimento para a construção científica de destaque do IMT FMUSP no cenário nacional e internacioal.